DESAFIOS À PRÁTICA
REFLEXIVA NA ESCOLA (Lino de Macedo)
A prática reflexiva na escola
Historicamente, prática e reflexão foram tratadas como adversárias.
Ainda hoje é freqüente a divisão entre aqueles que se interessam mais pela
reflexão teórica, pelo domínio do conhecimento no plano do discurso ou da
especulação, e aqueles que preferem “por a mão na massa”, isto é, considerar o
plano de experiência e suas realizações. Como pensar o conhecimento e a
reflexão sobre ele como um corpo que caminha com duas pernas, uma que expressa
sua dimensão prática ou procedimental e outra que representa sua dimensão
compreensiva ou explicativa? Como considerar essas dimensões do conhecimento
como duas partes compondo um mesmo todo, de modo independente? Defendemos,
portanto, uma relação de cooperação ou reciprocidade entre a reflexão e a
prática, uma complementando a outra, de forma irredutível e indissociável. Em
termos concreto essa mudança de ênfase sugere duas questões: como refletir
sobre a ação já realizada ou sobre a ação a realizar? Como praticar a reflexão?
Praticar a reflexão supõe admitir que, como prática, ela se expressa
como qualquer outra forma de conhecimento que se realiza no espaço e no tempo,
por meio de estratégia ou procedimentos que favorecem sua melhor realização, e
que pode ser mais bem realizada pela mediação de um formador. Apesar disso, a
prática reflexiva na escola ainda se faz de modo irregular, quase individual e
perturbado por todos os tipos de pressões e ambivalência. Irregular porque é
freqüente surgir algo urgente para ocupar o seu lugar. Quase individual porque
as iniciativas e as boas intenções institucionais nem sempre correspondem à
satisfação das necessidades para a realização dessa prática. Perturbador por
pressões e ambivalências porque a escola está cada vez mais sobrecarregada com
tarefas e expectativas sociais sobre a importância de seus produtos e, ao mesmo
tempo, só pode comportar-se de maneira pouco profissional – nos termos que
comentaremos no final deste artigo – e pouco habilitada para enfrentar esses
novos desafios.
Desafios à prática
reflexiva
Analisar os desafios à prática reflexiva na escola implica pensar o
tema na perspectiva de situações-problema, ou seja, dos obstáculos que
enfrentamos e do que somos desafiados a aprender em favor de sua superação.
Nessa perspectiva, propomos a analisar os seguintes obstáculos:
• Voltar nossa atenção para as ações e suas conseqüências, uma vez que
temos o hábito de pensar sobre objetos, acontecimentos ou conceitos;
• Aprender a refletir sobre a ação a realizar e sobre a ação
realizada;
• Saber considerar simultaneamente os processos de exteriorização e
interiorização inerentes à tomada de consciência;
• Aprender a refletir com a mediação de alguém ou de algum recurso,
isto é, dispor de estratégias de formação e aceitar o papel de um formador;
• Conviver com a dupla função de reflexão: alto-observação ou
descrição e, simultaneamente, transformação e emancipação;
• Incluir o antes e o depois da ação, possibilitados pela reflexão, em
seu durante.
Em geral, refletimos sobre objetos, acontecimentos ou conceitos que
são os objetivos de nossa prática. Estamos voltados “para fora”. Buscamos –
externamente – boas respostas ou boas formas de ensinar melhor. Sofremos com os
maus resultados, com a desatenção ou o desinteresse dos alunos, com as
dificuldades pedagógicas ou com falta de recursos, mas ignoramos os fatores que
os favorecem ou dificultam. A prática reflexiva supõe voltar-se “para dentro”
de si mesmo ou do sistema do qual se faz parte. Supõe dar um tempo para o que
não tem uma resposta imediata ou fácil. Implica valorizar a posição, o
pensamento, as hipóteses do sujeito que age. Supõe compreender que suas
interpretações, seus sentimentos ou suas expectativas são fatores importantes
para a produção dos acontecimentos.
Refletir sobre a ação a
realizar e sobre a ação realizada
Como regular o presente, a prática que realizamos aqui e agora,
considerando as ações já realizadas, o que pudemos aprender com elas e,
simultaneamente, aquilo que planejamos e que pudemos antecipar em favor dela?
Saber refletir sobre a ação significa atualizar e compreender o passado, fazer
da memória uma forma de conhecimento. Implica saber corrigir erros, reconhecer
acertos, compensar e antecipar nas ações futuras o que se pôde aprender com as
ações passadas. Envolve reconhecer que a leitura da experiência é tão
importante quanto ela própria e o significado – positivo ou negativo – que lhe
atribuímos. Implica saber e refletir para agir significa assumir, na prática, o
raciocínio e o espírito do projeto; significa organizar e comprometer o
presente em nome do futuro ou de uma meta que se pretende alcançar; significa
pré-corrigir erros, antecipar ações; significa imaginar os obstáculos a ser
enfrentados e os modos de superá-los; significa valorizar o planejamento da
ação e utilizar a avaliação como forma de regulação e observação do que ainda
não aconteceu, mas sobre o que já definimos um valor e um modo de intervenção.
Duplo processo:
exteriorização e interiorização
A prática reflexiva, como todo processo de tomada de consciência,
supõe dois percursos, iguais e contrários, a partir de um ponto periférico a
ambos: a interiorização e a exteriorização. Por que nossa relação com as coisas
sempre parte ou se expressa em termos de uma posição periférica, seja ao
sujeito que age, seja ao abjeto sobre o qual ele age? Como romper essas
relações superficiais, periféricas? Qual o papel dos erros, das diferenças, dos
conflitos cognitivos, das frustrações, em favor desse processo? Sobre o que
vale refletir ou tomar consciência? Como aprender a criar um contexto que
motiva a reflexão? Como recortar ou eleger situações-problema que sintetizam e
expressam os assuntos mais relevantes para nossa meditação? Como realizar essa
dupla marcha do conhecimento, uma em direção ao sujeito e a outra em direção ao
objeto, que nos encaminha para direções opostas, mas que tenham o mesmo sentido
(superar a ignorância e trocar o sofrimento pela alegria do conhecer)? Como
realiza-las de modo independente?
Ninguém reflete sozinho, porém ninguém reflete por nós. Com quem
refletimos sobre algum assunto? Qual é o papel do formador ou da pessoa que
participa do processo da reflexão? Quais são as estratégias que utilizamos na
prática reflexiva? O que significa fazer a mediação no processo de formação?
Sobre o que vale a pena refletir?
Reflexão: auto-observação,
transformação e emancipação.
Um dos desafios à prática reflexiva é aceitar sua função como
observação e leitura de nossa experiência; como um modo de olhar, ouvir, tocar
e dizer a nossa prática tal como ela pode se realizar; como um modo de lhe
atribuir significados e respeitar suas características e formas de expressão.
Como fazer isso sem culpa, condescencia, autorecriminação, arrogância ou
sentimento de superioridade e inferioridade? Ao mesmo tempo, a prática
reflexiva pode ser um modo de transformação ou emancipação de formas agora
rígidas, absoletas ou insuficientes de realização. O benefício dessas funções
implica rever hábitos e padrões de conduta ou de pensamento. Significa
comprometer-se com o que dizemos e assumir as conseqüências disso. Envolve
aprender a refletir como observar melhor, sem crítica, reconhecer o que foi
feito. Não é fácil passar do plano da ação para o da reflexão. As ações, sobre
as quais interessa refletir, estão organizadas em gestos, atitudes,
procedimentos didáticos, esquemas práticos. Transporta-la ao plano da reflexão
supõe, segundo Piaget, três obstáculos. O primeiro é o de aprender a
reconstituir, no plano da representação o que já está em uso (mesmo se suas
conseqüências não forem mais tão desejáveis ou positivas) no plano de ação. O
segundo é o de reconhecer que essa reconstrução comporta um processo formativo
complexo, pois significa descentrar-se das ações propriamente ditas e do
contexto de suas realizações, transformando em linguagem, que representa,
recorta, reorganiza e tira ou acrescenta significados agora no plano das palavras,
das imagens, dos modelos e de todas as formas de presentificação do que até
então era jogo de procedimentos e de estratégias. O terceiro obstáculo para
qual oferecemos muitas resistências, é o de dar um estatuto social e
interindividual ao que, até então, era restrito ao contexto da aula ou da
relação professor-alunos. A reflexão torna compartilhável, criticável e sujeito
ao controle mútuo o que antes estava restrito a uma situação particular e
restrita às pessoas dela testemunhas. Se isso pode ser libertário e
emancipável, pode também nos expor a uma situação sobre a qual não temos mais o
suposto controle. Nesses termos, a prática reflexiva, se bem conduzida, pode
ser um móvel de transformação. Contudo, isso supõe assumir riscos, tomar
decisões, mobilizar recursos, atualizar e rever esquemas, assumir a
incompletude ou a insuficiência das coisas. E mais: implica que nos exponhamos
frente aos outros e que nos libertemos de nossa solidão e do pseudoconforto de
seu anonimato.
Ação: antes, depois e
durante
Como considerar ação e reflexão, complementar e irredutível? Como
articular essas duas formas de conhecimento de modo interdependente? Como
possibilitar que uma reflexão sobre o antes e o depois da ação permita, pouco a
pouco, uma melhoria do que ocorre durante a ação? Sabemos que, muitas vezes,
tudo que podemos fazer é um máximo de ação com um mínimo de reflexão. Para
isso, recorremos preferencialmente a condutas por ensaio e erro, a hábitos e
condicionamentos, ficamos subordinadas às conseqüências – positivas ou
negativas – do que fazemos, estamos reduzidos às queixas ou às alegrias sem
saber suas razões. Ainda que sejamos profissionais da reflexão, ficamos
submetidos a um cotidiano sem tempo ou espaço para ela. Outros de nós já vivem
em situações opostas: maximizam a reflexão e minimizam a ação. Nesses casos, o
que constatamos é um excesso de plano discursivo (falar sobre), às vezes
moralistas e apoiado no que deve ser feito, expressando algumas vezes uma
relação externa, superior e arrogante. Pensamos que essas duas posições
extremas não valem a pena, pois podem tornar-nos capengas, vacilantes e
unilaterais.
A importância atual da
prática reflexiva na escola
Por que a prática reflexiva na escola é tão importante hoje? Valorizar
a importância da prática reflexiva na escola significa, entre outras coisas,
assumir que o magistério deve ser reconhecido como profissão e não apenas como
simples ofício. Tal como ser médico ou engenheiro, ser professor supõe uma
formação séria, complexa e difícil, mas também altamente valiosa. Ensinar é
mais do que uma extensão do trabalho de casa ou do trabalho doméstico ou da
mera repetição de um Manuel ou de um contexto didático escrito por um
especialista. Agora, a escola tornou-se para todos, isto é, tornou-se
compulsória e obrigatória, cumprindo o direito de nela as crianças poderem
aprender o que é significativo para suas vidas. Para realizar bem essa tarefa,
temos que nos profissionalizar. A prática reflexiva é um dos recursos para
isso.
Uma sociedade tecnológica exige domínios múltiplos e sempre
aperfeiçoados para se lidar com as máquinas e se beneficiar de suas realizações
ou produções. Um mundo globalizado exige o domínio de diferentes formas de
leitura e escrita, a relação com os diversos modos de enfrentamento e solução
de problemas, de vida social e de valores atribuídos às mesmas coisas. Um
universo ameaçado por entulhos e desperdícios, pela destruição e pelo
esgotamento de seus recursos, pela insuficiência de suas formas milenares de
conservação e transformação dos produtos de suas relações exige compreensão e
tomada de posição sobre as conseqüências de nossas ações, implica denunciar e
elaborar propostas que recuperem, regulem, evitem um colapso global cada vez
mais iminente. Uma sociedade que se quer igualitária, democrática, necessita
aprender a discutir, argumentar, construir coletivamente e aprender formas de
consenso, de superação de conflitos. Para combater a violência é suficiente
contratar guardas e construir presídios?
Não dá mais para a escola
manter-se restrita à transmissão de conteúdos disciplinares bem como à presença
de alunos dóceis à seus mestres e às características de seus professores. Uma
escola para todos supõe a disponibilidade para a prática de uma pedagogia
diferenciada e de uma avaliação formativa. Pedagogia diferenciada porque leva
em conta diversidade e a singularidade de todas as crianças que agora freqüenta
a escola e nela esperam aprender coisas significativas para sua vida. Avaliação
formativa porque observa, regula, seleciona, valoriza o que melhor pode estar a
serviço dessas aprendizagens e o que indica os processos ou as mudanças de
posição quanto ao que cada criança pôde aprender e desenvolver em favor de
conteúdos, competências e habilidades que nós, adultos, julgamos que elas deviam
dominar. A vida na escola, nos termos em que ela se configura hoje, supõe saber
enfrentar e resolver situações-problema cada vez mais complexas e para as quais
as respostas tradicionais são cada vez mais insuficientes, absoletas ou
inaplicáveis. Para isso, temos que nos tornar profissionais e superar a crítica
vazia e externa, a queixa, a culpa, a ingenuidade e o amadorismo. Penso que a
prática reflexiva, até pelos obstáculos que nos colocam, podem ajudar-nos nessa
direção.
Fonte: Revista Pátio Ano
VI – Nº 23 SET / OUT 2002

Obrigada por compartilhar o material aqui, facilita bastante.
ResponderExcluirMuito bom o blog do Dionysio!
ResponderExcluirParabéns!
Obrigada Mário!
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