sábado, 10 de janeiro de 2015

O primeiro dia de aula de um professor: o que fazer?

O impacto de entrar numa nova sala, com alunos novos, no primeiro dia de aula em muitos professores pode ainda causar insegurança. 
Vamos imaginar uma aula típica, de uns 45 a 50 minutos. Você entra e aquela dúvida volta: devo ser simpático ou seco? Sorrir ou mostrar cara de autoridade séria? Um psicólogo que conheço usa uma metáfora que aprecio: a relação profissional guarda semelhanças com o salva-vidas. Se ele se aproxima muito do afogado e o abraça fraternalmente, ambos afundam. Se ele fica muito distante, a vítima cumpre sua sina de afogar-se sem ajuda. É inútil fingir uma dureza que você não tem ou que nem quer ter. É perigoso usar de muita intimidade. A aula é um momento profissional e você não é amigo dos alunos. Amizade implica isonomia, igualdade, algo inexistente na sala de aula. Pelo mesmo motivo que você não é amigo, você não é o inimigo, pois amizade e inimizade implicam relações pessoais, frequentemente íntimas. Repita para si sempre: sou o professor (porque, em muitas ocasiões, alunos, direção e pais tentarão convencê-lo de outras coisas).
Chegou o dia: a aula começou e seus alunos sabem por instinto, como feras selvagens, se a pessoa a sua frente está segura ou não, farão uso disso. Distancie-se um pouco e deixe diminuir a importância da situação. Aquela aula não decidirá o destino do universo e, com sorte, a cada semana ela será um pouco melhor ou mais segura ao menos. Enfrente. Não tem jeito. A vítima inicial será seu orgulho, mas o mundo prosseguirá. Respire fundo e entre. É como injeção: a espera pela picada da agulha costuma causar mais angústia do que a espetada em si.

A aula

Do ponto de vista prático, uma boa aula é um cruzamento de quatro linhas de força. A primeira diz respeito a você. A segunda é o conteúdo em si. A terceira está nas condições externas (ambiente, barulho externo, iluminação, calor, conforto da sala etc.). A quarta e mais importante diz respeito aos alunos.

Primeira linha: você

Digamos o óbvio: você é, como todo ser humano, um elemento variável. Há dias bons e ruins. Há biorritmos: tenho colegas que adoram dar aula à noite e eu amo sempre dar aula no primeiro momento da manhã. Há problemas pessoais que interferem na sua atuação profissional. Com o tempo, você perceberá que há infecções específicas do magistério, como a “outubrite”, mal que acomete educadores quando o ano está no fim. Não tem jeito. Não somos robôs. Tenha sempre presente: você varia muito e seu aluno ainda mais. Entenda um pouco esse ritmo. Mas há um recurso para enfrentar essas oscilações. Antes de começar a jornada de trabalho pense: como estou hoje? Estou bem? Ótimo. Estou ansioso ou angustiado com a conta de luz que não consegui pagar? Tente afastar esse pensamento de forma prática: depois da aula, eu verei isso. Estou com um pouco de dor de cabeça? Posso resolver uma indisposição com algum remédio? Essas perguntas são importantes porque a consciência de um mal-estar ou de uma aflição costuma diminuir o controle que essa angústia tem sobre mim. Aprenda a se conhecer. O sintoma mais normal (e ruim) de quem não se conhece bem é a reação excessiva a coisas pequenas. Um aluno não abriu o livro na página certa e você teve vontade de matá-lo? Isso é um sintoma. É muito sábio ter um pouco de consciência sobre seu estado de ânimo para ser, no mínimo, justo com os alunos e, no máximo, eficiente como profissional.

Segunda linha: conteúdo

A segunda linha de força é o conteúdo em si. Existem programas, livros, apostilas, coordenadores, vestibulares e muitas variáveis que nos fazem, permanentemente, parecer atrasados com o conteúdo. Não importa o quanto você corra: na última etapa, com frequência a mais interessante, você está defasado. Para piorar: tudo e todos retardam o avanço do conteúdo. Avisos da direção, indisciplina, feriados e um mundo infinito de coisas que acontecem na sua aula e que impedem de falar ou de ensinar.
Planeje a quantidade de conteúdo que permita uma aula produtiva. Dar demais ou de menos atrapalha o ritmo dos alunos. Se sua aula tem 45 minutos, digamos, pense que quase 15 (geralmente mais) serão perdidos nos bueiros da chamada, indisciplina, avisos, alunos que pedem para ir ao banheiro etc. Então, imaginando que todo conteúdo deve fazer link com o que você deu na aula anterior naquela turma (lembre-se de que o aluno acabou de sair de uma aula sobre Tabela Periódica e está entrando numa sobre Império Bizantino), que este link demore uns cinco minutos e que você precisa reservar uns cinco minutos para fechar o conteúdo retomando conceitos centrais e reforçando o que foi dado restam… vinte minutos de aula. Evite começar lento e começar a correr quando o tempo se esgota. A técnica não pode ser superior ao conteúdo: você não pode passar mais tempo escrevendo do que explicando, mais tempo montando data-show do que analisando e mais tempo removendo cadeiras para um debate do que realizando o evento.

Terceira linha: condições externas

A terceira linha de força de uma aula diz respeito ao ambiente. Pode parecer muito estranho para quem começa, mas o ambiente da aula funciona como um cenário de uma peça: não é central, mas reforça o texto e cria “clima”. Assim, tente observar se o cenário é adequado. Há coisas que você pode fazer e outras estão longe do seu alcance. Você pode e deve estabelecer alguns minutos para colocar ordem antes da aula. Lixo pelo chão ou cadeiras amontoadas podem ser resolvidas. Não dê aula com o quadro cheio com a matéria do outro professor. Explique sempre aos alunos a importância de preparar o ambiente. Se necessário, dê o exemplo pegando um papel do chão, mesmo que pareça o lógico: não é sua função. Mas, você aprenderá logo, se ficar esperando que surja a pessoa adequada para fazer isso, sua aula esperará até a próxima era geológica.
Nunca caia na tentação de começar a falar baixo em meio ao caos e à sujeira para ver se eles prestam atenção. Não passe nunca a sensação de que tanto faz se eles ouvem ou não, ou se tanto faz se a aula for eficiente ou não. Ou a aula é ou ela não é. É melhor não dar uma aula do que aceitar o papel de monólogo patético.
Sobre o ambiente, você aprenderá logo algumas coisas estranhas. Por exemplo: se começar a chover lá fora, a aula será interrompida. Todos os seus jovens alunos ficarão olhando para a chuva na janela ou no telhado e deixarão de prestar atenção. Dias de verão em salas quentes são um desafio além da capacidade humana. Outra coisa: as obras na escola sempre iniciarão no primeiro dia de aula, com barulho constante. Avisos da direção somente serão dados quando você tiver, enfim, acalmado a turma. Quando houver um minuto de silêncio na sala alguém entrará para falar da festa de São João ou sobre um recente vandalismo no banheiro do segundo andar. Enfim, é fundamental tentar.
No mundo perfeito, a sala é confortável, com temperatura agradável, os aparelhos estão à disposição e funcionam, ninguém precisa ir ao banheiro a cada cinco minutos e os alunos te esperam com sorriso no rosto e sede de saber. Esse é o seu paraíso? É o meu também. Se você o deseja e luta por ele, você tem boa chance de ser um bom professor. Se você só pode trabalhar nesse paraíso e considera impossível ou indigno enfrentar outros purgatórios ou infernos, então… Tente outra coisa no mundo. Dar aula é muito interessante, mas não é a única função digna no mundo.

Quarta linha: o aluno

A última linha de força de uma aula é o aluno. É a linha mais importante. O aluno é para o professor o que o paciente é para o médico. É o objetivo da sua existência profissional. Há uma inversão tradicional da função pedagógica: considerar o aluno um problema para a escola. O comportamento do aluno pode ser um problema: ele não é um problema. Voltamos à metáfora médica: a doença é o problema, o doente não é.
Estamos diante de um dos dilemas mais curiosos do ensino: você pode combater o mau comportamento, mas sempre lembrando que o aluno é o seu objetivo maior. Separar essas coisas é difícil e, como eu, provavelmente você vai errar nesse campo.
Os cristãos medievais tinham uma regra que podemos adaptar com sucesso: odiar o pecado e amar o pecador. Sabe a consequência disso? Se entendermos a ideia bem, significaria deixar claro que eu não admito a bagunça porque ela é inimiga do aluno e não exatamente minha. É por gostar dele que eu não quero conversa e não por irritabilidade minha. Do ponto de vista ideal, que o aluno sinta que nunca é pessoal, que ele não é o problema, que eu posso até pedir que ele se retire da sala, mas porque, e unicamente, ele está impedindo a ele e à turma de atingirem o resultado. É preciso muita maturidade para isso. Quase ninguém tem. Eu não tive muitas vezes.
Acho que a coisa mais óbvia de todas eu levei muitos anos para entender. Existem fichas de avaliação, padrões, tabelas e até notas para se dar ao professor. A mais importante sempre esteve bem diante de mim: o olhar dos alunos. Eles dizem, com absoluta naturalidade, sobre o andamento de tudo. Aprenda a ver o rosto dos seus alunos e a entender. Aprender a ler seus olhos. Os olhos dos seus alunos são o espelho da Branca de Neve: dizem tudo o que você perguntar. “Não estamos entendendo, não tenho interesse, estou adorando, você fala alto demais, não estou ouvindo”: tudo está lá. Passei muitos anos achando que eu deveria falar mais e agir mais. Hoje acho que devo ver e ouvir mais.
Há poucos bons professores. Há muita gente que dá aula bem. Acho que o ponto principal que diferencia um do outro é a capacidade de olhar para seu aluno e se sentir junto com ele. Não confundam essa reflexão, por favor, com a ideia de que você deve oscilar tudo que faz em função do olhar de agrado e desagrado do aluno. Aqui vem a parte mais importante (e difícil): conhecer o olhar do meu aluno é conhecer meu ponto de partida, não meu objetivo final. Educar pode ser (e com frequência é) contrariar a vontade imediata do aluno. O olhar dele, a sensibilidade para com ele é seu ponto de partida. É quem diz quanta energia, quanta imaginação, quantos recursos você terá de realizar para que o olhar dele chegue ao ponto que você deseja. O olhar dele não é seu horizonte, mas sua possibilidade.

O que deve ser preparado na prática

O primeiro ponto: qual o conceito central da minha aula que deve ser enfatizado sempre e retomado ao final? Tenha isso sempre claro. Escreva ou guarde de memória. Vou precisar de alguma informação extra, ou um pequeno texto, ou fórmula ou desenho? Faça em casa antes. Anote no diário a lápis ou no seu controle pessoal o ponto em que parou em cada turma. Evite ao máximo perguntar aos alunos: onde nós paramos? Isso pode parecer desleixo ou desatenção. O plano da sua aula deve estar entre dois mundos: o fossilizado e o invertebrado. Se for um roteiro minucioso e passo a passo, parecerá sempre fossilizado e duro. Se nada houver e você confiar no carisma, aquele dom que falha quando mais necessitamos, ficará desarticulado. Tenha o conceito central na cabeça. Leve o material que precisar. Leia antes da aula o capítulo didático que você vai utilizar (creia-me, as surpresas podem ser enormes se você não o fizer). E em tudo mais: que o aluno sinta que você tem um ponto de partida e um de chegada e que a aula não foi um acidente, mas uma obra planejada. Isso fará toda a diferença.
Agora, um ponto que parecerá estranho a muitos. Tal como no teatro, há figurino. Há um figurino adequado para a aula. No caso do magistério, eu diria que (levando em conta também o que ganhamos) que o simples e sóbrio é adequado. O ideal é que a roupa do professor seja imperceptível. Nem tão sofisticada e nem tão despojada que mereça comentário. O espaço da aula não é o espaço da balada e certamente não é o espaço para ficar inteiramente à vontade. Levando em conta o grupo para o qual você dá aula, levando em conta sua faixa etária, levando em conta seu corpo e seus valores: encontre uma roupa adequada para que o conhecimento possa fluir na sala sem nenhum obstáculo ou distração. Roupa não é fundamental para o exercício do magistério: cuide para que ela continue assim.

Eu fiz tudo, mas…

Você cuidou de tudo. Planejou, acalmou-se, estudou. A aula é sobre algo fascinante. Eis que… não deu certo. Os alunos não gostaram, o conteúdo não avançou e você terminou o dia pensando se ser professor é de fato o que você deseja. Saiba: isso é bem mais comum do que você imagina. Algumas aulas produzem um efeito positivo imenso. Outras são um desastre. A maioria é, apenas, média. Tudo afeta uma turma, especialmente de crianças e jovens, da umidade ao dia da semana, da véspera do feriado a um jogo importante. Prepare-se para muitos banhos de água fria na sua profissão. Aprenda a lidar com eles.
Uma aula brilhante ou uma aula fracassada devem ser analisadas. Há motivos para isso. Quanto mais você conseguir (e você poderia até pedir ajuda nesse processo aos alunos) avaliar, mais terá consciência. Saber que uma coisa não deu certo num ano não é rejeitá-la. Não existem fórmulas, já dissemos. A química de uma aula é delicada como num encontro a dois. Porém, se você fizer análises sinceras, terá uma base maior para o futuro. Seja honesto consigo, mas seja misericordioso também. No fundo uma aula é sempre um buraco-negro: sabemos o que é e o que fazer para ir lá, mas não temos a menor ideia do que vai sair do outro lado. Foi uma maravilha? Parabéns. Tente repetir. Foi um fracasso? Bem, pelo menos você não está sozinho. Todos nós, com 2 meses ou com 40 anos de magistério, fracassamos muitas vezes. Aquilo que não nos mata, como queria Nietzsche, vai nos fortalecendo.
Aula é assim: um exercício artesanal. Não há nada que garanta com segurança absoluta o sucesso de uma aula. Mas, pouco a pouco, errando bastante e sempre tentando acertar, decepcionando-se e reentrando no jogo é que você vai construindo sua história de professor. Essa história será tecida a partir de um jogo acidentado de erros e acertos. E no final? Não sei! Ainda não cheguei nele, mas se você está lendo isto é porque, de alguma forma, nós acreditamos num bom final.
Gostou? Leia mais no livro Conversas com um jovem professor, de Leandro Karnal.

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